No transporte (das ideias)

Outro dia indo pro trabalho, subi num ônibus bem cheio - mais até do que o costumeiro pra linha e horário - rumo ao meu destino. Fui pro fundo e fiquei segurando nas barras com as duas mãos, porque, afinal, sempre rola um solavanco ou uma freada que só falta jogar geral no colo do motorista. 

A certa altura, entrou uma moça e colocou a mão na barra bem na altura da minha cara. Vou repetir: ela colocou a mão na frente das minhas fuças! Veio o cheiro forte do perfume que ela estava usando e certamente havia passado no pulso. Além disso, tapou parte da minha visão do caminho pela janela. Pensei: "Aff... Tá vendo que tem uma cara na sua mão, não?". Dei uma afastada com a cabeça, balancei em negativa, mas, pelo visto, a moca nem percebeu minhas interjeições silenciosas. Pensei de novo: "falta de respeito com o próximo! Não se importa com outro ser humano, não?!". Imediatamente depois pipocou na cabeça: "será que não é você que se importa demais com o outro, meu anjo?!".

Olha a brisa: ninguém instituiu um mandamento "não colocarás a mão na frente do outro dentro do busão", mas olha como eu tenho introjetado em mim que não posso incomodar ninguém. "Esteja contida, esteja organizada, ocupe apenas o lugar suficiente pro seu tamanho, não fale demais, não fale de menos. Não fale alto, mas se faça ouvir" e um longo etcetera. 

O ônibus estava cheio! Ela poderia ter colocado a mão em outro lugar? Até que sim. Só que eu também poderia ter dado um passo pro lado e tirado minha cara dali. Percebi que eu estava querendo que ela tivesse o mesmo comportamento contido, controlado que me impuseram e me imponho todo dia (será que aqui é o rolê do recalque e da repressão que a psiquiatria tanto diz?).  Quer dizer, está aqui introjetado que eu não posso pesar na vida de ninguém. Minha existência tem que passar quase despercebida. 

O esforço que tenho feito é me colocar confiante, assim como todo mundo, a partir de meus recursos, sabendo que são o que são e tem muito potencial e muita debilidade. 

Créditos: Fernando Madeira - A Gazeta


A gente tem por reflexo também tolerar muito pouco quando invadem nosso espaço - chamam de kinesfera, perguntei pra uma amiga. Deve ter a ver com uma parada de ter certo controle sobre o próprio corpo. Mas nesse caso, dentro de um ônibus lotado não existe muito isso. Se tivessem mais ônibus, com maior qualidade, não teria a mão na minha cara, ou as pernas apertadas no banco ou cinco pessoas espremidas em menos de um metro. (militada de leve).

Pode parecer um episódio muito bobo, mas penso que diz muito sobre como me coloco no mundo. Vem a imagem da menina contida num banco com pouco espaço enquanto o homem do lado abre suas pernas e ocupa um espaço que me faz imaginar que talvez tenha algum tipo de inchaço bem anômalo no saco escrotal. 

Diz sobre o espaço na medida de achar que é muito pequeno e quase perceptível. Como se eu fosse uma bolinha no canto da sala, impedida de me colocar e me misturar com as outras bolinhas. 

No fim das contas, a moça foi mais pro fundo e sentou. Pouco depois eu também sentei. O cheiro do perfume dela ficou no meu nariz e a cabeça cheia de ideias. 

Comentários

  1. rolê do recalque e da repressão. Boa definição rsrs

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  2. Noss mulher, me identifico tanto com o seu processo. Me sinto muito assim tbm: pedindo licença para estar no mundo... Minha psicóloga diz que não me vejo do tamanho que sou... Sei lá. Gostei da sua reflexão. Obrigada por dividir

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