A perspectiva alheia da autoimagem

Acho que algumas formas de arte às vezes nos encontram e encaixam com os momentos que estamos vivendo de maneira estrondosa. Ai fico pensando “porque não vi isso antes”. 

Isso é o que Elena Ferrante reverberou em mim e recorri a essa digressão para dizer que já tinha ouvido falar da obra de uma escritora que usa pseudônimo para guardar para si sua identidade. Só isso já me faz pensar quão interessante é sua produção, pois mesmo eu me referindo como elA, nada garante não se tratar d' elE, ou elES. 

Mas voltando a sua obra, o livro A vida mentirosa dos adultos¹ me pegou em cheio. Suscitou várias reflexões e várias sensações que me atraíram pro texto de maneira a não conseguir fazer mais nada nos últimos dias (Mentira vai...continuei vivendo e fazendo outras coisas).

Antes de qualquer coisa, quem é - ou são - Elena Ferrante? De nacionalidade italiana, Ferrante vem se consolidando como um ser aclamado pela literatura a partir da famosa tetralogia, A amiga genial - também chamada de tetralogia Napolitana - e do fascínio de seus leitores por saber quem está por trás do pseudônimo. 

Eu terminei A vida mentirosa… com um misto de desejos. Por um lado querendo "engolir" as páginas com o prazer de quem quer logo saber o final, por outro, tentando me segurar na leitura, por medo de “perder” as sensações que o livro trouxe. Vários trechos são ótimos e emblemáticos da atmosfera que a autora quer passar, porém, quero falar sobre um trecho específico, - sem correr o risco de fazer revelações sobre seu enredo - que foi como revelar um dos mais profundos dos meus sentimentos juvenis. Foi um daqueles momentos de "cabeça explodindo" (imaginem o emoticon).

A história conta a passagem da infância aos primeiros anos da adolescência de Giovanna que começa sua busca por saber quem é, como é vista e assim ter relações e amores durante uma fase por si só difícil; e ainda lidar com o divórcio dos pais. A personagem tem uma busca incessante por tentar estabelecer vínculo com aqueles ao seu redor. Tanto o é, que o início dessa jornada se dá quando, Giovanna ouve o pai raivosamente a comparando com sua tia, Vittoria, quando diz: “ela é como Vittoria”. Uma figura distante e, que além de despertar a curiosidade da garota, ainda desencadeia diversos acontecimentos na vida de todos, incluindo uma outra família muito próxima a de Giovanna. Isso passa a fundamentar todos os pensamentos sobre quem a garota acha ser.

Bom, dito isso, a forma como os pensamentos e reflexões de Giovanna são descritos de maneira tão rica e honesta chegam a ser aflitivos e agoniantes pela riqueza de detalhesde. Os silêncios das relações são tão asfixiantes que cheguei a pensar em parar a leitura ou eu mesma gritar por algo. 

Mas vamos ao trecho: 

“Ao contrário de Angela, que desde criança sempre prestou muita atenção em como se vestia, eu, desde o início daquele longo período de crise, deixara de lado, como uma provocação, a obsessão com a aparência. Você é feia - eu havia concluído -, e uma pessoa feia fica ridícula quando tenta se embelezar. Então minha única obsessão era a limpeza, eu vivia me lavando.”

 (trecho de A Vida mentirosa dos adultos de Elena Ferrante)

Opa… como assim, dona Ferrante, a senhora joga essa frase, assim, na minha cara?! Imediatamente me vi com 12, 13 anos. Lembro que eu vivia querendo lavar os cabelos, apesar de ficar o tempo todo com eles amarrados. Vivia querendo cheiros agradáveis e roupas limpas. Tinha uma obsessão (como diz o trecho) em manter minhas coisas arrumadas e organizadas. As lembranças desse comportamento - que hoje ainda muito conservo -  me atravessaram junto com a criação de nossa autoimagem em reflexo sobre o que os outros acham de mim. Giovanna passa a achar que a comparação com a tia Vittoria é um atestado final de que é feia, desengonçada. E mais, arrogante, descontrolada, petulante, quase destinada a uma vida fracassada. E assim que conhece Vittoria, tudo parece uma confirmação, já que a tia é tudo isso - e, ao mesmo tempo, muito longe de ser só isso. 

Eu não tive essa figura desafiadora e desafiante durante minha adolescência. Apesar disso, lembro que assim como a personagem, minha autoimagem era sempre baseada na comparação. Com meus familiares, com meu irmão, meus amigos. Lembro vivamente de um colega na escola me dizer “você é feia, hein?!”. Hoje acho essa situação até um pouco engraçada. Mas me pareceu durante bastante tempo uma verdade cruel demais para ser questionada. E assim passei a gostar muito de cheiros, organização, limpeza. Então se eu não era bonita, pelo menos tinha que ser limpa. Ainda que minhas roupas não fossem bonitas, tinham que ser limpa. De alguma forma de me misturar entre os outros tinha que ter. 

Hoje a construção da minha autoimagem foi muito trabalhada e se tornou muito mais complexa em vários sentidos. Consigo ver muita beleza em diversos aspectos do meu ser. E uma beleza ampla, não só física, mas também física, intelectual, emocional, psíquica - ainda que cheia de contradições e complexidades. Mas esse texto da Ferrante me fez relembrar o caminho para chegar até o momento atual. Até o que me fez chegar nesse texto - e que agradeço, se vocês chegaram comigo até aqui.

Acho que o centro de tudo que quero dizer é fundamentalmente como somos estranhamente moldados pelo mundo que nos cerca. Seja em qualquer sentido. Vale ressaltar que estamos num momento em que, em diversos aspectos dessa construção espelhada, muitos corpos conscientes têm questionado esse "espelho" que vem sendo apontado para seus corpos e questionado profundamente a imagem distorcida que é mostrada. E que bom isso, porque questionar quem somos - ou o que não somos - nos traz um caminho de descoberta incrivelmente difícil, doloroso, mais próximo do real e não do imaginário construído por nossa necessidade de conexão ou por estruturas que nos enquadram e limitam a diversidade do que somos enquanto humanos.

Mais do que o garota que se enfiava nas calças e camisetas largas; que se escondia nos óculos gigantes ou que vivia com os cabelos amarrados  - mas cheirosos -;  hoje, a possibilidade de ver esse processo vivo e inconstante é até fonte de alegria. Tenho carinho pela menina que fui. Afinal, estou aqui por causa dela, né? 

Leiam Elena Ferrante. Ainda estou lidando com esse livro, mas já me preparando para o próximo: Dias de abandono.

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1. FERRANTE, Elena. A Vida Mentirosa dos Adultos. Editora Intrínseca. 2020.





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